🗣️Fala, Helê 👩🏾🦳
Minha mãe morreu. Já há alguns dias, mas esta é a primeira vez que escrevo essa frase impronunciável porque parece que cada uma da letras arranha minha pele de um jeito insuportável. Por isso tenho recorrido a sinônimos e metáforas — faleceu, não resistiu, fez a passagem, essas pelúcias da linguagem contra a aspereza da realidade. Na minha cabeça ecoa “perdi minha mãe”, esse jeito infantil de se dizer que não tem mais quem sempre esteve aqui — no início era a mãe, antes do verbo. Interessante essa expressão porque remonta a um dos grandes medos da infância, o de se perder da mãe e não ser encontrada. Agora, aos 55 anos, me perdi completa e irreversivelmente da minha; um desamparado assustador me abocanhou.
Ao tomar as primeiras providências práticas, junto com meu irmão, considerei tudo uma cansativa gincana burocrática. Mas talvez seja apenas o peso de ser o adulto na sala, e ter que tomar decisões e providências que ninguém mais pode nem deve tomar. A gente acha que vira adulto em vários momentos na vida: aos 18 (que bobagem), ao sair de casa, ao ter filho. Achei que já tinha completado a cartela e era uma adulta completa, mas constatei, surpresa, que perder a mãe te transforma num adulto sênior. Ainda bem que o pai segue firme (deus conserve!), última instância superior preservada (toc toc toc na madeira).
Tenho dificuldade em responder à recorrente pergunta “como você está?”, ela parece guardar expectativas que eu não sei exatamente quais são, nem como atendê-las (tenho que?). Estou muito triste; olho pra vida como se tivesse caído um véu sobre todas as coisas, um filtro que torna tudo meio embaçado, sem viço. No meio de um verão escaldante, de um fevereiro realmente infernal, de repente tudo ficou um tom abaixo, uma nota menor, uma luz mais fraca. Não estou conseguindo lidar com o silêncio: estou sempre lendo vendo ouvindo alguma coisa, tentando impedir, sem sucesso, o fluxo continuo das cenas dos dias finais da mãe, constantemente reprisados na minha cabeça.
Tristeza, algum assombro, medos mais e menos difusos, já saudade. Mas não tenho desesperos maiores, ou revoltas inconformadas. Aceitação. O carinho avassalador dos meus amigos e amigas, mais uma vez, me amparou e tem me sustentado, vigilante. Veio amor de todo jeito, dos mais distantes lugares — minha mãe ficaria satisfeita (ficou? está? não sei como conjugar. Pra depois: rever umas crenças).
As cores voltarão, acho eu, mas sinto que vai levar um tempo para encontrar meu lugar no mundo de novo, num mundo sem mãe, sem início, sem porto, sem farol: aquela figura impávida e sábia, que ilumina e resiste aos avanços do mar. Não importa que nos últimos tempos a luz foi perdendo o brilho e que eu tenha preferido usar minha própria bússola e cartas náuticas: a mãe estava lá, e saber disso fazia uma diferença brutal. Navego sem instrumentos.
Agradeço aqui a avalanche de afeto recebido de muitas gentes. Estou bem, com as ressalvas de praxe - dentro do possível, dadas as circunstâncias, diante do acontecido etc. Sem elas, estar bem não parece sincero ou correto.
Às foliãs e foliões amigos, peço o favor de brincarem o carnaval um pouquinho mais pra compensar minha ausência, neste ano em que minha alegria entristeceu. Volto quando puder.
Querida, querida, querida, não sei o que te dizer, te abraço aqui de longe, em pensamento, e sinto a tristeza de te saber triste, de te saber sem sua mãe.
Te deixo aqui um poeminha de Carlos Drummond de Andrade:
"Para sempre.
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho."
Sinto muito, Helê. Faz 9 anos que meu pai se tornou um beija-flor, tenho certeza que foi isso que aconteceu com ele. Foi difícil perder o hábito de ligar para ele (que detestava telefone) para perguntar como fazer esse ou aquele molho, qual o chá para o gargarejo do meu filho com dor de garganta ou apenas para ouvir sua voz grave e macia (ele era baixo no coral). Espero que seu coração vá encontrando conforto nas lembranças que você colher enquanto percorrer essa estrada do luto ❤️