Só dói quando eu não Rio
O longo período até o próximo carnaval, nossa relação tumultuada com nossos símbolos e os cariocas originários.
🗣️Fala, Helê 👩🏾🦳
“Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. (…) Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança.”
de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, [São Paulo, fevereiro de 1923]
Descobri esse texto no ano passado e fiquei naquele meu estado, levemente obcecada, porque achei-o muito bonito e fiel ao espírito do carnaval carioca. Lembro que saí distribuindo para amigos foliões, os que achei que o compreenderiam como eu. Lembrei dele novamente agora, no início desse desagradável período entre carnavais, ao qual retorno à força e contragosto. Ajudou a suportar o banzo; indico para aqueles que sofrem como eu por viver uma “realidade” sem purpurina nem batuque antes das 10h. Também os que não entendem esta provação podem se aproximar um pouco do sentido do carnaval carioca pelo olhar de um paulistano sensível.
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Eu não fui lá, ainda não entendi como funciona e teria, por princípio, uma má vontade inicial com o terminal Gentileza que a prefeitura acabou de inaugurar. Não apenas pelo atraso de sete anos, mas porque o transporte de massa nessa cidade deveria ser feito prioritariamente pelo metrô e trens. Mas eu não consigo deixar de sorrir com esse nome; me enternece o fato de um equipamento público ser batizado com o nome de um profeta louco que eu vi perambular pelas ruas da cidade. Acabou sendo um de seus ícones, numa trajetória cheia de revezes - Marisa Monte cantou uma parte dessa história, e a narrativa da Wikipedia me pareceu bem precisa. A cidade o ignorou, acolheu, homenageou, rejeitou, descuidou, recuperou e agora o eterniza, no local em que ele pintou seus painéis. Talvez seja mesmo essa a maneira contraditória, violenta e persistente como o Rio de Janeiro lida não apenas com seus símbolos, mas com a própria gentileza.
E essa notícia? Família do Profeta Gentileza não cobra por projetos que envolvam seu nome
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Depois de um aula incrível do Rafael Freitas, neste aniversário de 459 anos da cidade eu só consigo pensar que a data celebra, na verdade, o começo do fim. A aliança entre portugueses e tupinambás para a expulsão dos franceses selou a sorte dos povos originários que povoavam essas terras. O Rio de Janeiro só foi possível porque os indígenas permitiram, numa história de luta, negociação, resistência e rendição. “O Rio de Janeiro é uma cidade de apagamentos culturais e ancestrais”, afirma Freitas, autor do seminal “O Rio antes do Rio”.
Concentravam-se principalmente na Guanabara, com mais de oitenta tabas documentadas em registros históricos. A partir da margem onde surgiu a cidade do Rio de Janeiro, pelo menos vinte comunidades se espalhavam pelas enseadas do litoral, com grandes populações na Ilha do Governador e no interior, nas atuais Zona Norte e Oeste da cidade. Também existiam tabas por toda a Baixada Fluminense até as cabeceiras do rio Paraíba do Sul, onde tupinambás coabitavam com outros tupis e demais etnias indígenas do litoral e interior de São Paulo.
A cidade que cultua a zona sul e reconhece a tradição do Centro, despreza a importância de todo o resto do território, do mesmo modo que ignora suas origens tupi - embora elas reapareçam em nomes, costumes, palavras. O Rio de Janeiro (também) é terra indígena.
Tanto é terra indígena que somos, herança Tupi, CARIOCAS :)