🗣️Fala, Helê 👩🏾🦳

Há muito tempo eu queria falar sobre o caso de Gisele Pelicot, a francesa que foi dopada pelo marido e estuprada por ele e por dezenas de homens por mais de 10 anos. (Como é incômodo sequer escrever esta frase, resumir nela essa perversidade inominável!). As notícias sobre o caso não chegavam aqui com os detalhes que eu procurava; deixei para falar depois de concluído o processo, outros assuntos apareceram e de repente a notícia ficou velha. Mas um caso com o de Gisele, e sobretudo as questões que ele desperta, não envelhecem enquanto vivermos em sociedades onde o machismo e a misoginia são banalizados.
Além de incrivelmente corajosa, Gisele, após sofrer uma violência inimaginável, foi generosa o suficiente para prestar um serviço valioso todo nós: ensinar que a vergonha tem que mudar de lado, não repousar sobre a vítima, mas colar na cara dos culpados. Ela poderia permanecer anônima e ainda assim conseguir a condenação do marido e de seus cúmplices, mas mostrar o próprio rosto para o mundo inteiro foi um ato político necessário para lembrar que ela não tem do que se envergonhar - enquanto vários réus chegavam ao tribunal ridiculamente, com peças de roupa sobre a cabeça.
Eu desejo, do fundo do coração, que Gisele consiga viver com alegria e paz, superando esse trauma horroroso. Seu asqueroso ex-marido, Domenique Pelicot, que morra preso. Eu sigo me perguntando sobre os mais de 50 homens que participaram dessa violência absurda, fazendo sexo com uma mulher inconsciente. Quantos foram presos, a que penas foram condenados? Como se defenderam? Fui conferir e achei uma boa matéria na BBC exatamente sobre isso, segundo a qual a imprensa francesa passou a chamar esses homens de Monsieur-Tout-Le-Monde (algo como "Sr. Todo Mundo"), o tal homem comum: “Eles são jovens, idosos, parrudos, magros, negros e brancos. Entre eles, estão bombeiros, motoristas de caminhão, soldados, seguranças, um jornalista e um DJ.” As idades também variam muito, de 27 a mais de 60 anos.
Pra mim, esse é o aspecto mais desesperador dessa história. Porque você pode rotular Domenique Pelicot como um monstro ou um psicopata, não importa exatamente o selo, qualquer um tende a isolá-lo numa condição extraordinária, fora do comum. Mas a extensão de tempo em que ele perpetrou a violência sem ser incomodado e a quantidade absurda de comparsas que reuniu faz repensar essa classificação. São todos monstros, igualmente doentes? Ou há algo que, coletivamente, dá aos homens passe livre para satisfazer suas fantasias sem preocupação com o estado de consciência de quem delas participa? Ou ambos?
Em algum momento relativamente recente, a ideia de ter fantasias sexuais e vivenciá-las deixou de ser uma aberração ou depravação para ser compreendida como parte da sexualidade. Hoje em dia, as menções a jogos eróticos aparecem até em filmes da tarde e novelas, com um viés sensual ou cômico, mas quase nunca condenável - e, de fato, fazem parte de uma sexualidade saudável. Mas toda fantasia é válida, até mesmo manter relações sexuais com uma pessoa inerte? Quando é que se deve desconfiar que talvez tenha algo errado no nosso desejo? Não tenho a resposta, mas a falta de consentimento explícito deveria ser, no mínimo, um alerta.
Vale lembrar, para nosso total horror, que 50 homens foram julgados, mas 72 estavam nos vídeos que Domenique Pelicot manteve por anos. Alguns apareciam desfocados, dificultando a identificação; outros, embora claramente visíveis, não foram identificados por não constar de nenhum registro policial ou mesmo em redes sociais. "Em consulta à Polícia Judiciária, decidimos parar a investigação em um determinado momento. Poderíamos ter investigado durante dez anos", disse o juiz do caso. Ou seja, pode haver mais vítimas e mais agressores e, de novo, esses podem ser qualquer um.
A outra lição duríssima que Gisele nos ensinou foi que não existe lugar seguro para ser mulher - nem a nossa própria casa. Embora eu não fique totalmente à vontade com a máxima “todo homem é um agressor em potencial”, também não consigo refutá-la. Para nos defender, defender nossas filhas e mães, todas a mulheres, temos que denunciar as condições favoráveis para que as agressões aconteçam. Combater o machismo onde quer que ele apareça, nas suas mais variadas formas: nas brincadeiras pretensamente inofensivas, no bate papo descontraído, numa lista de e-mails de amigos.
Ao homens cabe lutar para não confirmarem a máxima.
Eles que lutem, e muito.
PS: Eu me questionei se não era um exagero terminar esse texto fazendo referência, ainda que velada, à história mais comentada da semana (perdendo só pro possível Oscar da Nanda): uma mulher contando sobre a descoberta de uma traição e, na sequência, no machismo recreativo praticado por seu companheiro e amigos, muitos também amigos dela. Infelizmente, concluí que não, e uma das evidências é que a narrativa sobre um relacionamento abusivo, tóxico e a conivência de um grupo de homens teve muita repercussão e textão, a maioria deles questionando a jornalista que protagonizou a história, quando o foco deveria ser nos homens envolvidos.
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Impossível não falar no maior assunto da semana, o que nos fez até esquecer temporariamente a posse do Laranjão: Fernanda Torres e “Ainda estou aqui” indicados ao Oscar, levando os brasileiros ao delírio - em especial os cariocas, mais ainda os tijucanos. Eu disse a uma amiga que é uma alegria com várias camadas, porque é pela Fernanda, pelo cinema brasileiro, pela arte e por escancarar para o mundo e para o xóvens o que foi a ditadura brasileira. É pelo Marcelo e por toda a família Paiva, por irritar a direita e incomodar diariamente todos os milicos desse país. Eu gosto de pensar que cada vez que alguém do elenco, um jornalista, um apresentador, qualquer pessoa diz “Eunice Paiva” na TV, em algum lugar do Brasil um militar tem um espasmo.
Brilhante. Em todos os temas tocados.