Carta aberta ao gringo incrédulo
Ou: como uma cidade pode reunir milhões e não ter medo de bomba
🗣️Fala, Monix👩🏻
Há momentos da vida contemporânea em que a pessoa precisa de uma rede social pra chamar de sua: cerimônia do Oscar, debate de campanha eleitoral (especialmente quando rola barraco), morte do Papa e conclave, e, claro, mega show em Copacabana. São situações que pedem uma vivência compartilhada, em que o ambiente normalmente tóxico e polarizado das redes vira seu oposto e se transforma em um lugar em que a gente encontra nossos iguais, ri juntos das mesmas besteiras, se diverte com comentários sobre detalhes que não reparamos e por aí vai. Quando o evento em questão é algo que ultrapassa as fronteiras do Brasil, tem rodada bônus: a interação dos brazucas esculhambando os gringos desavisados, que via de regra (peço desculpas aos meus professores da faculdade e a todos os manuais de jornalismo pelo uso dessa expressão proibida) não sabem que com brasileiro não se brinca.
Bem, daí que ontem foi dia de acompanhar o mega show da Lady Gaga com meus amigos de BlueSky e hoje, claro, fiquei levemente obsessiva com os comentários dos gringos de cabeça bugada com a multidão assistindo a diva pop em plena praia de Copacabana. A tropa brasileira já está fazendo seu trabalho, tentando explicar o inexplicável em inglês, português, espanhol, memes e gifs. Eu me divirto mas tenho preguiça de interações nas redes, então trago para cá, em forma de carta aberta, minha parte nessa tentativa de desenhar para um estrangeiro hipotético o que aconteceu ontem. Começando por um estrangeiro não tão hipotético assim, que lançou esse bluíte comentando um post que falava do recorde de público.
Onde 2,5 milhões de pessoas fazem xixi?
Bem, em primeiro lugar vamos esclarecer um ponto: o número oficial da prefeitura foi 2,1 milhões (400 mil pessoas não é tão pouco a ponto de podermos arredondar) — e se me permitem uma opinião altamente impopular, eu não acredito nessa estimativa. Nem nessa, nem em nenhum cálculo de multidão feito nas últimas décadas (e nesse ponto estou bem acompanhada). O problema é que se no público do Rod Stewart tinham 3 milhões (não tinham) e se os Rolling Stones reuniram 1,5 milhões (não reuniram), a proporção megalomaníaca precisa ser mantida. É difícil trazer esses números para um patamar mais realista, então seguimos inflacionando e fingindo que acreditamos. De qualquer forma, sejam quantos milhões fossem, era gente à beça.
É tanta gente na rua que o melhor a fazer é só observar da janela
Mas OK, digamos que fossem 2 milhões de pessoas. Elas fazem xixi nos banheiros químicos, moço, que todo evento de rua no Brasil tem aos montes. Ou no mar, bem ali ao lado. Ou numa garrafa. Ou em lugares menos apropriados, que eu também não vou fingir que nós somos assim tão civilizados. Mas a gente sobrevive, isso eu garanto. Ontem de madrugada os caminhões da Comlurb passavam aos montes aqui na minha rua, começando poucos minutos depois do show e estendendo a atividade por horas e horas. Hoje, menos de 12 horas depois de terminar o evento, Copacabana está mais limpa e menos fétida que em uma proverbial quarta-feira à tarde. Dei uma caminhada por um raio de 500 metros a partir do meu quarteirão e não vi uma unidade de garrafa, lata, copo plástico ou qualquer tipo de lixo no chão.
E se alguém gritar ‘bomba’? E se tiver uma bomba de verdade?
Bem, em relação à primeira possibilidade, a melhor resposta veio no próprio BlueSky: a galera responde ‘o movimento é sexy!’ e todo mundo sai dançando. Nada pra ver aqui.
Quanto à segunda hipótese, a primeira coisa que me veio à cabeça foi uma história que me contaram de uma americana que passou um reveillón em um apartamento na avenida Atlântica e, ao ver a multidão se aglomerando lá embaixo, teve exatamente esse pensamento — “eles não têm medo de bomba?” Não, moça. Aqui o máximo de medo que uma multidão suscita nas pessoas é ter o celular roubado, ou alguém sair na porrada ali ao lado e sobrar pra você. Talvez a gente tenha medo de bala perdida, mas deixa quieto, porque isso é coisa de família e só quem pode comentar somos nós mesmos.
Mas já que a pergunta é essa, vá lá, aqui terrorista não se cria, meu amigo. Ainda bem, porque já temos bastante trabalho lidando com nossos próprios problemas.
Onde essas pessoas estacionam seus carros?
Eu juro, teve gringo metendo essa lá no BlueSky. De todas as cabeças bugadas, essa é a que eu considero a mais triste. Como assim, estacionar os carros? Moço, aqui tem metrô, tem ônibus, tem táxi, tem fretado, tem gente que atravessa túnel a pé. Inclusive nem pode entrar de carro em Copacabana horas antes do show começar, sabe? E na hora de ir embora, apesar dos perrengues (que todo mundo já espera quando se mete em um mega evento de rua), as pessoas sabem o que fazer. Existe todo um planejamento do transporte público para atender a demanda de chegadas e partidas, porque é isso que uma prefeitura faz, sabe? Seja em dia de carnaval, ano novo, show grátis, olimpíada ou Rock in Rio. Se os amigos quiserem, a gente pode dar uma consultoria aí pra vocês.
Quanto custou o ingresso?
Ô, querido, deixa eu te contar uma coisa, show pra milhões de pessoas na praia não tem ingresso não, é tudo grátis! Não é lindo isso? Mas olha, não é porque é grátis que é bagunça: tinha barreiras de acesso nas ruas transversais e todo mundo (tá, não sei se foi todo mundo, mas enfim) que chegou na área do show passou por uma revista. Eu desci pra ver o movimento às duas da tarde e já tinha gente “entrando” ali pela Paula Freitas. Às seis horas desci de novo, e a fila já estava bem grandinha, mas o clima era de festa, a galera tranquila esperando a vez de passar.
E agora o gringo incrédulo vai cair o queixo de vez: não só o show era grátis, como a prefeitura montou uma campanha de vacinação ao lado do Copacabana Palace, hotel onde a Gaga estava hospedada, em frente ao local onde o palco foi montado. Aqui é assim: a galera vai assistir o show e sai com a vacina de HPV em dia.
Não é de hoje que eu digo isso: o dia a dia no Rio de Janeiro é muito, muito difícil, mas os grandes eventos são nossa chance de brilhar. Essa é a verdadeira vocação da cidade.
Atesto e dou fé, aprendi sobre a nossa vocação e expertise com você, honey, que diz isso há anos. Como são muitos (ainda bem!), não lembro qual foi a primeira vez que vi você garantir com
serenidade e autoridade: lógico que vai dar certo (Rolling Stones? Panamericano?).
excelente, Monix. é isso. eu trabalhei na Secr Municipal do Trabalho aqui, láááá atrás, e a gente já via isso com a indústria do carnaval. o caminho é este.
a gente precisa olhar para os outros problemas, sem dúvida; mas isso aí tá na coluna das soluções.