🗣️Fala, Monix👩🏻
Hoje trago um post direto do túnel do tempo, aproveitando o gancho da estreia do remake de um dos maiores sucessos da telenovela brasileira. Eu, que sou noveleira e assisto até coisa ruim (alô Mania de Você, já vai tarde), com certeza acompanharei com curiosidade. Quero saber como vão adaptar essa obra que ao mesmo tempo é tão datada e tão atemporal.
Fiquem com o texto publicado originalmente em julho de 2020.
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Rever uma novela tão emblemática como Vale Tudo é, antes de qualquer coisa, uma experiência no mundo bizarro. No plano material, cada cena é um mergulho em uma indagação sobre como vivíamos “sem” tal coisa, ou “com” tal coisa. Telefones de fio (em um dos cenários o telefone tem o fio todo enrolado, coisa que deixava meu pai maluco), videocassetes, disc-lasers (era assim que chamávamos os moderníssmos CDs no final dos anos 80, crianças), computadores grandalhões e disquetes, máquinas de telex (!), até os eletrodomésticos pesadões e quadradões, tudo me espanta. Os carros, meu Deus, os carros. 1988 foi antes de o Collor dizer que os carros brasileiros eram todos umas carroças, ofendendo a indústria automobilística nacional e os defensores da reserva de mercado (é, crianças, pesquisem). Spoiler alert: eram mesmo. (Voltarei ao Collor daqui a pouco.) 1988 foi antes de o fax chegar a Brasil. E não me façam começar a falar de roupas e penteados, porque né?
Não sei se na época era claro para mim, mas Vale Tudo parte de uma premissa (e tudo na novela gira em torno dela): a desonestidade estrutural da sociedade brasileira. A trama central se baseia nas interpretações diferentes que Raquel (a mãe) e Fátima (a filha) fazem dessa constatação inicial. Raquel acha que se todos são desonestos, cabe a ela (e a todos que a cercam) corrigir isso por meio de ações estritamente éticas. Já Fátima entende que se todo mundo torce as regras para se dar bem, a solução é abandonar qualquer senso ético como única forma de sobreviver nesse mundo cruel.
A música-tema tem um dos versos mais contundentes do rock nacional, de autoria de Cazuza: “o meu cartão de crédito é uma navalha”…
Assistir a esse dilema tendo como pano de fundo a conjuntura de 2020 dá margem a muitas reflexões.
Primeira: a novela acabou em janeiro de 1989. Em novembro, tivemos a primeira eleição direta para presidente em 29 anos. E elegemos (opa, nós quem, cara-pálida?) Fernando Collor de Mello, que baseou sua campanha na ideia de caçar “marajás”, funcionários públicos que ganhavam super salários sem trabalhar. Fala-se muito da influência das novelas da época sobre a mentalidade nacional que resultou em sua vitória, especialmente as exibidas nos meses da campanha, como O Salvador da Pátria e Que Rei Sou Eu?, mas a ideia de uma “faxina ética” direcionada apenas (ou principalmente) à classe política, olhando em retrospectiva, parece ter sido uma simplificação tremenda.
Segunda: em Vale Tudo, a corrupção está em todas as instâncias da sociedade brasileira, e ali são retratadas principalmente as mais cotidianas, com um foco especial na corrupção no setor privado: um dos vilões se dedica a desviar recursos da empresa familiar. Mais de trinta anos depois, parece que nosso foco se desviou para o “andar de cima”, a política partidária e institucional, e aquele papo sobre como a corrupção começa com quem molha a mão do guarda (que, diga-se de passagem, é outra simplificação besta, mas enfim, é um ponto de partida) foi praticamente esquecido.
Terceira: a parte da novela que fala de crise econômica e desemprego, tirando as questões ligadas à inflação, é tristemente atual. No entanto, um detalhe me chamou a atenção. A moeda era o cruzado, e tudo custava milhares de. Mas, para conseguir acompanhar os valores das coisas, percebi que tirando um zero de cada preço eu chegaria mais ou menos ao tanto que elas custariam hoje. As únicas exceções foram a diária da faxineira, que pela minha equivalência tabajara hoje vale 3 vezes mais (alvíssaras!), e o câmbio do dólar, que hoje, bizarramente, mesmo com a taxa absurdamente alta, seria seis vezes mais caro, se fosse mantida a proporção da época em relação aos preços das outras coisas.
Quarta: a exemplo de boa parte das obras de ficção, e não só as brasileiras, os vilões são pessoas muito mais interessantes. Até aí, nada de novo. Acho essa questão bem problemática, e isso talvez seja assunto para outro post. Mas em Vale Tudo os mocinhos de modo geral são muito chatos, e a suposta heroína, Raquel, é insuportável na sua unidimensionalidade — seus chiliques e suas lições de moral parecem, vistos de hoje, um ensaio canastrão para sua meteórica e constrangedora passagem pelo governo federal. Parece que Regina Duarte acreditou na personagem que interpretou três décadas atrás, e comprou aquele discurso fajuto de “vamos moralizar o país”. Raquel, a chata, com certeza seria uma bolsomonion (e pior, uma “tia do zap”) em 2020.
Quinta: há, no entanto, honrosas exceções a esse padrão de mocinhos unidimensionais, e elas se encontram principalmente nas personagens que encarnam os temas “polêmicos” que toda novela que se preza precisa abordar. A Heleninha Roitman que vejo hoje me parece bem mais interessante (na época eu a achava chata, provavelmente por conta da interpretação excessivamente dramatizada de Renata Sorrah, que eu não curto). A relação de Laís e Cecília marcou época, mas é engraçado ver como elas eram apresentadas como “amigas” e ninguém falava diretamente sobre o fato de obviamente serem um casal — até que uma delas morre e a questão da herança entra no meio. Tem sido interessante lembrar que estávamos saindo de um longo período em que produtos culturais e artísticos sofriam censura prévia, e que de repente se podia falar de certos assuntos. No Brasil de Damares, não sabemos até quando.
Há outra muitas reflexões possíveis, claro. Se quiser, deixe as suas nos comentários. Eu por aqui fico pensando que na verdade, fora cenários e figurinos, o Brasil de 2020 é de novo tristemente parecido com o de 1988.
eu amo vale tudo, revi quando reprisou no canal viva e não vejo como ela pode ser feita hoje sem afundar até o joelho em consciência política, o que a globo tem evitado nos últimos anos. uma novela sobre corrupção sem tocar na polarização partidária vai ser muito superficial. pelo que vi, vai cair na caricatura. é torcer pra pelo menos preservarem a parte novelão de vale tudo.
Eu revi a novela no comecinho do lockdown e, de novo, no final do ano passado. Não sou super noveleira, mas casei com um 🤣 que texto maravilhoso, minha querida!