O esporte é laico (mas você pode ser religioso)
Não me ofereça fé quando busco entretenimento
🗣️ Fala, Helê 👩🏾🦳
Quem acompanha futebol há muito tempo está incomodado com a expressão acintosa da fé cristã em momentos de destaque nas partidas. E o incômodo só cresce, já que as manifestações são cada vez mais numerosas e intensas. E se a CBF (e a Fifa) “veda expressamente” manifestações de cunho político, deveria começar a moderar as manifestações religiosas de jogadores durante os jogos. A princípio, acho que bastaria uma recomendação evitar de gestos expressivos, algo que desestimulasse os caras a esfregar a religião deles na minha cara quando eu só quero ver futebol. Eu não sou obrigada - nem você, nem ninguém.
Sempre houve gestos religiosos no futebol, nos esportes em geral, na vida cotidiana. E a supremacia judaico cristã tratou de normalizar isso - até chegarmos nesse ponto, em que precisamos desviar das tentativas de evangelização a cada evento midiático que assistimos. Religião é questão de foro íntimo, diz respeito ao cidadão e ao seu direito de professá-la em casa ou em seus templos. Isso sempre valeu para os praticantes das religiões de origem africana, para muçulmanos e minorias religiosas. Mas precisa valer para todo mundo - ou vamos parar o jogos na hora em que jogadores islamitas precisarem orar em direção à Meca, sem reclamação.
Reparem que eu disse ‘expressão acintosa da fé’ lá no início. Porque o cara que faz um sinal da cruz não chega a me incomodar. Mas o que se ajoelha no meio de campo com os braços aos céus, rosto contorcido agradecendo aos céus de modo que eu consigo ler cada palavra dos seus lábios, esse tem que parar. Ele está aproveitando o espaço e atenção que recebeu por estar jogando para pregar. O nome disso é proselitismo religioso, e eu me sinto enganada porque não foi isso que eu vim buscar. E praticamente não há jogo brasileiro que não aconteça pelo menos uma dessas ações. E, infelizmente, estamos assistindo isso também nas olimpíadas.
Rayssa Leal aproveitou a câmera focada nela, minutos antes de competir para, usando a linguagem de Libras, dizer que ‘Jesus Cristo é o caminho, a verdade e etc’. Não é o sinal da cruz, uma oração, um pedido de proteção ou sorte, trata-se de propaganda religiosa, ela está propagando a sua fé sem que eu tenha a possibilidade de escolher receber essa mensagem ou não.
🗣️ Fala, Monix👩🏻
Outro exemplo, em uma cena comovente: a judoca brasileira Larissa Pimenta venceu a italiana Odette Giuffrida na final do judô, no domingo passado, e levou a medalha de bronze. Num gesto de fair play, a Giuffrida abraçou a Larissa e as duas conversaram baixinho por uns minutos. Fofas <3
Só que depois a Larissa deu entrevista e contou qual foi o papo de pé de ouvido que elas tiveram. "Eu apresentei Deus para ela. Antes da disputa, ela disse que independentemente de tudo, a glória seria de Deus."
Ou seja, a brasileira e a italiana são amigas, uma converteu a outra, as duas lutaram pela medalha de bronze e quem venceu foi Deus. Gente, daqui a pouco o espírito esportivo vai ser substituído pelo espírito santo? É isso mesmo?
A gente respeita a fé das pessoas, mas os jogos olímpicos têm um caráter super inclusivo, e é de bom tom lembrar que tem gente de todas as crenças competindo, e até os que não acreditam em nada devem merecer um lugar ao sol. As olimpíadas da Antiguidade, essas sim, prestavam homenagem a Zeus, o deus supremo de uma cultura politeísta. Na era moderna, o Barão de Coubertin reeditou a ideia em um contexto de avanço das instituições laicas. O esporte era visto como uma forma de equilibrar corpo e mente e de dar força moral para um mundo que se reconstruía, no final do conturbado século XIX.
Enfim, se é pra agradecer a alguma entidade espiritual do mundo superior, a gente curte mais o bordão dos locutores esportivos, que volta e meia invocam o politeísmo dos jogos antigos e agradecem aos "deuses do esporte".
"Religião é questão de foro íntimo, diz respeito ao cidadão e ao seu direito de professá-la em casa ou em seus templos". A frase perfeita resume com perfeição essa excelente reflexão sobre um fenômeno que vem avançando perigosamente sobre todos os campos da vida social: o "imperialismo" neopentecostal, o cristianismo totalitário, que quer se impor sobre a sociedade e suas instituições a qualquer custo, como ocorreu na Idade Média - não por acaso identificada historicamente como a Idade das Trevas.
Eu amo vocês por isso!!! ♥️