Duas mulheres
Com humor e inteligência, "Hacks" discute liberdade, limites, ética e cancelamento, tendo duas mulheres como protagonistas. (edição extra da news que sai às sextas, geralmente)
🗣️Fala, Helê 👩🏾🦳
Assisti à 3ª temporada de “Hacks” economizando episódios, porque é uma delicinha bem escrita, divertida e breve. Para mim, um dos atrativos da série é abordar a vida profissional de duas mulheres (brancas, ok, não consigo ter tudo 🤷🏾♀- embora mereça). Mas eu falava sobre o foco na carreira : é em torno da atividade profissional delas que os demais arcos vão sendo construídos - o que ainda hoje é raro no audiovisual. No embate entre essas suas comediantes, entram em discussão temas como envelhecimento, amizade, limites, cultura woke e afins. De um jeito leve mas não superficial.
A discussão sobre humor e aquilo que no Brasil se convencionou chamar de politicamente correto está posta desde a sinopse, no encontro entre uma millenial e uma comediante “da velha guarda”. Mas nesta temporada vai mais fundo, atinge um nervo. Quando Deborah está sendo cancelada por piadas preconceituosas (e ruins) feitas no passado, rejeita ferozmente as críticas. E se recusa a pedir desculpas, embora não consiga apresentar um argumento além do questionável axioma “um humorista nunca pede desculpas por sua piada”.
“Você não perdeu seu valor, não é sobre o seu talento, mas sobre alguns erros que você cometeu. Tudo bem você ser rico e amado por causa das suas piadas e tudo bem que pessoas se sintam ofendidas por elas. Seu brilhante cérebro de comediante não consegue ver isso? E por que não se desculpar?”
Ava para Deborah, ep.8, 3ª temporada
Dei um pulo no sofá nessa hora porque é exatamente o que eu queria dizer para o David Chapelle, que eu sempre considerei brilhante mas que, de um tempo pra cá, empacou na obtusidade do argumento ‘it’s a joke’, como se “ser uma piada” fosse um passe livre e mágico para que qualquer coisa possa ser dita. Chapelle fez piada sobre pessoas trans, foi criticado pela comunidade, e desde então passou fazer delas um alvo; as piadas sobre trans viraram quase uma bandeira: ele insiste no confronto, dobra a aposta, agarrado à pretensa defesa do sua liberdade de expressão - que, convenhamos, nunca foi realmente ameaçada. O chamado “cancelamento” tende a ser bem suave para quem ocupa posições de poder. (O que talvez tenhamos perdido seja a ideia de unanimidade — que, aliás, sempre foi ilusória, mais ainda numa sociedade realmente diversa).
Como Chapelle, outros comediantes americanos se dizem vítimas da “cultura do cancelamento” (a Vox fala sobre o assunto neste artigo) - e volta e meia aqui no Brasil também acontece. No caso dele, acho lamentável mesmo porque o considero genial; ainda o assisto quando aparece um novo material, na esperança que ele deixe de lado a arrogância narcísica (redundante?) e pare de querer provar que está certo. Tá bom, todo comediante de stand up tem que ser um pouco autocentrado para encarar um palco sozinho, mas tornar-se mais importante que a piada costuma ser o caminho para o fracasso - ou a falta de graça, o que dá no mesmo, em se tratando de comédia.
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Fiz essas reflexões e escrevi até o parágrafo acima depois de ver o 8º episódio, que eu acreditava ser o último. Mas, para minha alegria, esta temporada teve mais um, com um gancho espetacular para uma próxima, ancorado em um plot twist de fato, daqueles que você não vê chegar, sobre a relação profissional entre Deborah e Ava. Reforço então a recomendação: assista‘Hacks’, que tem ainda outras pequenas alegrias, diversões e provocações - entre elas, ver uma mulher septuagenária transar (com diferentes parceiros) em todas as temporadas - uma verdadeira transgressão, no audiovisual e na vida real.
eu achei essa temporada muito curtinha (ou será que é porque eu esperei tanto tempo pra ela chegar? me deu a sensação que poderia ter mais uns dois episódios). eu amo hacks, acho a deborah um personagem revolucionário na tv, uma mulher idosa lutando para continuar relevante, e cheia de nuances, tão falha e tão maravilhosa ao mesmo tempo, quase irresistível.