C'est fini
Perdoe o atraso, mas era preciso viver as olimpíadas até a última gota de suor - para então despedir-se.
🗣️Fala, Helê 👩🏾🦳
Sim, sim, eu também sou uma viúva das Olimpíadas, e já estou sentido os efeitos da síndrome de abstinência. Não sou do tipo raiz, feito a Luciana, que acompanha o ciclo olímpico completo de vários esportes e deve estar realmente naquela vibe Djavan, faltando um pedaço. Não, eu sou do tipo volúvel que provavelmente só voltará a se envolver com a maioria das modalidades daqui a quatro anos. Mas já sinto falta do alarido da torcida na TV - e do silêncio aterrador dos lances capitais; de vibrar por conhecidos e desconhecidos, de me admirar com as incontáveis possibilidades do corpo humano. E de Paris, lógico.
Considero fascinante essa tradição centenária que reúne uma boa parte da humanidade para que homens e mulheres brinquem com o corpo - neste caso, o verbo em inglês, ‘to play’, dá a medida exata do que se trata. (Eu tinha pensando num ET, mas não é preciso sair da Terra - arrogância a nossa acreditar que é um evento global no sentido literal da palavra). Imagine que você precisa explicar para alguém que vive numa comunidade sem contato com a, digamos, sociedade capitalista, que a cada quatro anos, milhares de pessoas se juntam para disputar várias brincadeiras: em dupla, em time, um a um e até sozinho; com bicho, com brinquedos de vários tipos - com roda, rodinha, peteca; bolas de todos os tamanhos, com e sem música, embaixo d’água, tudo isso para experimentar do que os corpos são capazes - e comparar com outros corpos (e tem milhões que assistem). Retire dos jogos olímpicos toda o invólucro midiático, as implicações políticas e econômicas e até mesmo o decantado espírito olímpico e teremos ali gente brincando, experimentando o que o corpo pode fazer, até onde pode ir.
Claramente algumas dessas atividades nasceram de práticas cotidianas, como a canoagem ou o arco e flecha - e depois viraram entretenimento. Mas muitos outros não têm, fora do contexto esportivo, origem ou função outra a não ser o movimento, a beleza, a brincadeira: quem inventou tênis de mesa ou o salto ornamental não tinha nenhuma preocupação utilitária ou funcional a não ser brincar, fruir.
Esse foi o meu olhar para esses jogos, em meio a centenas de minutos de propaganda enfiados goela abaixo, entre uma competição e outra. Além disso, meu pensamento recorrente era: “Meu deus, quem teve a ideia sensacional de aproveitar essa cidade como cenário das provas?” Eu não me acostumei, até o final ficava encantada com os enquadramentos deslumbrantes do vôlei de praia aos pés da torre, da esgrima no Grand Palais, do tiro dividindo tela com a cúpula de les Invalides. Na verdade, eu espero jamais me acostumar a Paris (onde, aliás, fui muito feliz).
Na parede da memória ficarão muitas imagens. O pódio negro de Rebeca reverenciada talvez seja a mais forte, inesquecível - incontornável, como dizem os franceses. Eu gosto muito da sequência inteira: ela levantando os braços e a cabeça, celebrando a vitória e aceitando o reconhecimento, e depois dando as mãos às oponentes, unindo forças, reconhecendo também o valor delas e o significado daquele pódio. Se na foto do Medina surfando o ar, clássico instantâneo, ele desafia a lei da gravidade, na de Rebeca o que se revogam são as expectativas sobre as mulheres negras - tanto que o diretor de imagem perdeu esse momento ao vivo, que só pudemos ver depois, em fotos e outros ângulos. A transmissão oficial enquadrou apenas a vencedora, incapaz de atentar para o fato de que aquela vitória esparramava-se para além do mais alto lugar do pódio.
Pódio que foi, aliás, palco de lances interessantes, além da entrega dos cobiçados objetos de desejo: os caras do skate brindando medalhas como se fossem taças, a israelense lembrando à Bia Souza de sorrir, pouco antes da subida; a ginasta chinesa que não sabia que ‘tinha’ que ‘morder a medalha’. Na minha galeria vou guardar também o gesto terno, melancólico e reverente do lutador cubano que deixou as sapatilhas no ringue, após vencer a última luta, na qual ganhou o quinto ouro consecutivo em olimpíadas. E a capa do Globo pós-vitória da Bia Souza, a que melhor uniu imagem e texto e traduziu a emoção de quem se viu naquela vitória.
Au revoir!
As imagens mais emocionantes dessas Olimpíadas são de Bia Souza. Sorriu, chorou, se surpreendeu, vibrou, deu entrevista, homenageou a avó preta. Virei fã dela imediatamente, antes mesmo de ouvir o que dizia, apenas sentindo nas imagens o impacto das suas emoções e seu inequívoco carisma, tão grande quanto seu corpo, sua beleza e sua simpatia. Viva Bia! Viva a Mulher Preta Brasileira!
aff vou chorar tudo de novo. mas como a gente foi feliz nesses jogos.